Os Deuses de casaca

 


 

Texto-fonte:

Teatro de Machado de Assis, org. de João Roberto Faria,

São Paulo: Martins Fontes, 2003.

 

Publicado originalmente pelo Tipografia do Imperial Instituto Artístico, Rio de Janeiro, 1866.

 

 

 

 

A

José Feliciano de Castilho

Dedica este livrinho

O Autor

 

 

 

 

PERSONAGENS

 

PRÓLOGO

EPÍLOGO

JÚPITER

MARTE

APOLO

PROTEU

CUPIDO

VULCANO

MERCÚRIO

 

 

 

O autor desta comédia julga-se dispensado de entrar em explanações literárias a propósito de uma obra tão desambiciosa. Quer, sim, explicar o como ela nasceu, e o seu pensamento ao escrevê-la. Foi há mais de um ano, quando alguns cavalheiros davam uns saraus literários, na rua da Quitanda, que o autor, convidado a contribuir para essas festas, escreveu Os deuses de casaca. Até então era o seu talentoso amigo Ernesto Cibrão quem escrevia as peças que ali se representavam. Um desastre público impediu a exibição de Os deuses de casaca naquela época, e em boa hora veio o desastre (egoísmo do autor!), porque a comédia, relida e examinada, sofreu correções, acréscimos, até ficar aquilo que foi habilmente representado no sarau da Arcádia Fluminense, em 28 de dezembro findo, pelos mesmos cavalheiros dos antigos saraus, arcades omnes.

 

Que ela ficasse completa, não ousa dizê-lo o autor; mas ao menos está consignada a sua boa vontade.

 

Uma das condições impostas ao autor desta comédia, e ao autor do Luís, era que nas peças não entrassem senhoras. Daqui vem que o autor não pôde como lhe pedia o assunto, fazer intervir as deusas do Olimpo no debate e na deserção dos seus pares. Os que conhecem estas coisas avaliarão a dificuldade de escrever uma comédia sem damas. Era menos difícil a Garrett e a Voltaire, pondo em ação as virtudes romanas e as lutas civis da república dispensar o elemento feminino. Mas uma comédia sem damas para entreter os convivas de uma noite, cujos limites eram uma variação de piano e o serviço de chá, é coisa mais fácil de ler que de fazer.

 

O autor não quis zombar dos deuses, não quis fazer rir os espectadores à custa dos antigos habitantes do Olimpo. Esta declaração é necessária para avisar aqueles que, dando ao título da comédia uma errada interpretação, cuidarem que vão ler um quadro burlesco, à moda do Virgile travesti de Scarron.

 

Uma crítica anódina, uma sátira inocente, uma observação mais ou menos picante, tudo no ponto de vista dos deuses, uma ação simplicíssima, quase nula, travada em curtos diálogos, eis o que é esta comédia.

 

O autor fez falar os seus deuses em verso alexandrino: era o mais próprio.

      

Tem este verso alexandrino seus adversários, mesmo entre os homens de gosto, mas é de crer que venha a ser finalmente estimado e cultivado por todas as musas brasileiras e portuguesas. Será essa a vitória dos esforços empregados pelo ilustre autor das Epístolas à Imperatriz, que tão paciente e luzidamente tem naturalizado o verso alexandrino na língua de Garrett e de Gonzaga.

 

O autor teve a fortuna de ver os seus Versos a Corina, escritos naquela forma, bem recebidos pelos entendedores.

 

Se os alexandrinos desta comédia tiverem igual fortuna, será essa a verdadeira recompensa para quem procura empregar nos seus trabalhos a consciência e a meditação.

 

Rio, 1º de janeiro de 1866.

 

 

 

 

ATO ÚNICO

 

(Uma sala, mobiliada com elegância e gosto; alguns quadros mitológicos. Sobre um consolo garrafas com vinho, e cálices).

 

PRÓLOGO

(entrando)

 

Querem saber quem sou? O Prólogo. Mudado

Venho hoje do que fui. Não apareço ornado

Do antigo borzeguim, nem da clâmide antiga.

Não sou feio. Qualquer deitar-me-ia uma figa.

Nem velho. Do auditório alguma ilustre dama,

Valsista consumada aumentaria a fama,

Se comigo fizesse as voltas de uma valsa.

Sou o Prólogo novo. O meu pé já não calça

O antigo borzeguim, mas tem obra mais fina:

Da casa do Campas arqueia uma botina.

Não me pende da espádua a clâmide severa,

Mas o flexível corpo, acomodado à era,

Enverga uma casaca, obra do Raunier.

Um relógio, um grilhão, luvas e pince-nez

Completam o meu traje.

E a peça? A peça é nova.

 

O poeta, um tanto audaz, quis pôr o engenho à prova.

Em vez de caminhar pela estrada real,

Quis tomar um atalho. Creio que não há mal

Em caminhar no atalho e por nova maneira.

Muita gente na estrada ergue muita poeira,

E morrer sufocado é morte de mau gosto.

Foi de ânimo tranqüilo e de tranqüilo rosto

À nova inspiração buscar caminho azado,

E trazer para a cena um assunto acabado.

Para atingir o alvo em tão árdua porfia,

Tinha a realidade e tinha a fantasia.

Dois campos! Qual dos dois? Seria duvidosa

A escolha do poeta? Um é de terra e prosa,

Outro de alva poesia e murta delicada.

Há tanta vida, e luz, e alegria elevada

Neste, como há naquele aborrecimento e tédio.

O poeta que fez? Tomou um termo médio;

E deu, para fazer uma dualidade,

A destra à fantasia, a sestra à realidade.

Com esta viajou pelo éter transparente

Para infundir-lhe um tom mais nobre... e mais decente.                                                                                                  

Com aquela, vencendo o invencível pudor,

Foi passear à noite à rua do Ouvidor.

 

Mal que as consorciou com o oposto elemento,

Transformou-se uma e outra. Era o melhor momento

Para levar ao cabo a obra desejada.

Aqui pede perdão a musa envergonhada:

O poeta, apesar de cingir-se à poesia,

Não fez entrar na peça as damas. Que porfia!

Que luta sustentou em prol do sexo belo!

Que alma na discussão! que valor! que desvelo!

Mas... era minoria. O contrário passou.

Damas, sem vosso amparo a obra se acabou!

 

Vai começar a peça. É fantástica: um ato,

Sem cordas de surpresa ou vistas de aparato.

Verão do velho Olimpo o pessoal divino

Trajar a prosa chã, falar o alexandrino,

E, de princípio a fim, atar e desatar

Uma intriga pagã.

Calo-me. Vão entrar

Da mundana comédia os divinos atores.

Guardem a profusão de palmas e de flores.

Vou a um lado observar quem melhor se destaca.

A peça tem por nome — Os deuses de casaca.

 

 

 

Cena I

 

MERCÚRIO (assentado), JÚPITER (entrando)

 

JÚPITER

(entra, pára e presta ouvido)

 

Cuidei ouvir agora a flauta do deus .

 

MERCÚRIO

(levantando-se)

 

Flauta! é um violão.

 

JÚPITER

(indo a ele)

 

Mercúrio, esta manhã

Tens correio.

 

MERCÚRIO

 

Ainda bem! Eu já tinha receio

De que perdesse até as funções de correio.

Quero ao menos servir aos deuses, meus iguais.

Obrigado, meu pai! — Tu és a flor dos pais,

Honra da divindade e nosso último guia!

 

JÚPITER

(senta-se)

 

Faz um calor! — Dá cá um copo de ambrósia

Ou néctar.  

 

MERCÚRIO

(rindo)

 

Ambrósia ou néctar!

 

JÚPITER

 

É verdade!

São as recordações da nossa divindade,

Tempo que já não volta. 

 

MERCÚRIO

 

Há de voltar!

 

JÚPITER

(suspirando)

 

Talvez.

 

MERCÚRIO

(oferecendo vinho)

 

Um cálix de Alicante? Um cálix de Xerez?

 

(Júpiter faz um gesto de indiferença; Mercúrio deita

vinho; Júpiter bebe)

 

JÚPITER

 

Que tisana!

 

MERCÚRIO

(deitando para si)

 

Há quem chame estes vinhos profanos

Fortuna dos mortais, delícia dos humanos.

 

(bebe e faz urna careta)

 

Trava como água estígia!

 

JÚPITER

Oh! a cabra Amaltéia.

Dava leite melhor que este vinho.  

 

MERCÚRIO

 

Que idéia!

 

Devia ser assim para aleitar-te, pai!

 

(depõe a garrafa e os cálices)

 

JÚPITER

 

As cartas aqui estão Mercúrio. Toma, vai

Em procura de Apolo, e Proteu e Vulcano

E todos. O conselho é pleno e soberano.

É mister discutir, resolver e assentar

Nos meios de vencer, nos meios de escalar

O Olimpo...

 

(Sai Mercúrio.)

 

 

 

Cena II  

 

JÚPITER

(só, continuando a refletir)

 

 ...Tais outrora Encélado e Tifeu

Buscaram contra mim escalá-lo. Correu

O tempo, e eu passei de invadido a invasor!

Lei das compensações! Então, era eu senhor;

Tinha o poder nas mãos, e o universo a meus pés.

Hoje, como um mortal, de revés em revés,

Busco por conquistar o posto soberano.

Bem me dizias, Momo, o coração humano

Devia ter aberta uma porta, por onde

Lêssemos, como em livro, o que lá dentro esconde.

Demais, dando juízo ao homem, esqueci-me

De completar a obra e fazê-la sublime.

Que vale esse juízo? Inquieto e vacilante,

Como perdida nau sobre um mar inconstante,

O homem sem razão cede nos movimentos

A todas as paixões, como a todos os ventos.

É o escravo da moda e o brinco do capricho.

Presunçoso senhor dos bichos, este bicho

Nem ao menos imita os bichos seus escravos.

Sempre do mesmo modo, ó abelha, os teus favos

Destilas. Sempre o mesmo, ó castor exemplar,

Sabes a casa erguer junto às ribas do mar.

Ainda hoje, empregando as mesmas leis antigas,

Viveis no vosso chão, ó próvidas formigas.

Andorinhas do céu, tendes ainda a missão

De serdes, findo o inverno, as núncias do verão.

Só tu, homem incerto e altivo, não procuras

Da vasta criação estas lições tão puras...

Corres hoje a Paris, como a Atenas outrora;

A sombria Cartago é a Londres de agora.

Ah! Pudesses tornar ao teu estado antigo!

 

 

 

Cena III

 

JÚPITER, MARTE, VULCANO (os dois de braço).

 

VULCANO

(a Júpiter)

 

Sou amigo de Marte, e Marte é meu amigo.

 

JÚPITER

 

Enfim! Querelas vãs acerca de mulheres

É tempo de esquecer. Crescem outros deveres,

Meus filhos. Vênus bela a ambos iludiu.

Foi-se, desapareceu. Onde está? quem a viu? 

 

MARTE

 

Vulcano.

 

JÚPITER                          

 

Tu?

 

VULCANO

 

É certo.

 

JÚPITER

 

Aonde?

 

VULCANO

 

Era um salão.

Dava o dono da casa esplêndida função.

Vênus, lânguida e bela, olhos vivos e ardentes,

Prestava atento ouvido a uns vãos impertinentes.

Eles em derredor, curvados e submissos,

Faziam circular uns ditos já cediços,

E, cortando entre si as respectivas peles,

Eles riam-se dela, ela ria-se deles.

Não era, não, meu pai, a deusa enamorada

Do nosso tempo antigo: estava transformada.

Já não tinha o esplendor da suprema beleza

Que a tornava modelo à arte e à natureza.

Foi nua, agora não. A beleza profana

Busca apurar-se ainda a favor da arte humana.

Enfim, a mãe de amor era da escuma filha,

Hoje Vênus, meu pai, nasce... mas da escumilha.  

 

JÚPITER

 

Que desonra.

 

(a Marte)

 

E Cupido?

 

VULCANO

 

Oh! esse...

 

MARTE

 

Fui achá-lo

Regateando há pouco o preço de um cavalo.

As patas de um cavalo em vez de asas velozes!

Chibata em vez de seta! — Oh! mudanças atrozes!

o nome, meu pai, mudou o tal birbante;

Cupido já não é; agora é... um elegante!

 

JÚPITER

 

Traidores!   

 

VULCANO

 

Foi melhor ter-nos desenganado:

Dos fracos não carece o Olimpo.

 

MARTE

 

Desgraçado

 

Daquele que assim foge às lutas e à conquista!

 

JÚPITER

(a Marte)

 

Que tens feito?  

 

MARTE

 

Oh! por mim, ando agora na pista

De um congresso geral. Quero, com fogo e arte,

Mostrar que sou ainda aquele antigo Marte

Que as guerras inspirou de Aquiles e de Heitor.

Mas, por agora nada! — É desanimador

O estado deste mundo. A guerra, o meu ofício,

É o último caso; antes vem o artifício.

Diplomacia é o nome; a coisa é o muito engano.

Matam-se, mas depois de um labutar insano;

Discutem, gastam tempo, e cuidado e talento;

O talento e o cuidado é ter astúcia e tento.

Sente-se que isto é preto, e diz-se que isto é branco:

A tolice no caso é falar claro e franco.

Quero falar de um gato? O nome bastaria.

Não, senhor; outro modo usa a diplomacia.

Começa por falar de um animal de casa,

Preto ou branco, e sem bico, e sem crista e sem asa,

Usando quatro pés. Vai a nota. O argüido

Não hesita, responde: "O bicho é conhecido,

É um gato". "Não senhor, diz o argüente: é um cão".

 

JÚPITER

 

Tens razão, filho, tens!  

 

VULCANO

 

Carradas de razão!

 

MARTE

 

Que acontece daqui? É que nesta Babel

Reina em todos e em tudo uma coisa — o papel.

É esta a base, o meio e o fim. O grande rei

É o papel. Não há outra força, outra lei.

A fortuna o que é? Papel ao portador;

A honra é de papel; é de papel o amor.

O valor não é já aquele ardor aceso;

Tem duas divisões — e de almaço ou de peso.

Enfim, por completar esta horrível Babel,

A moral de papel faz guerra de papel.

 

VULCANO

 

Se a guerra neste tempo é de peso ou de almaço,

Mudo de profissão: vou fazer penas de aço!  

 

 

 

Cena IV

 

OS MESMOS, CUPIDO

 

CUPIDO

(da porta)

 

É possível entrar?

 

JÚPITER

(a Marte)

 

Vai ver quem é.

 

MARTE

 

Cupido.

 

CUPIDO

(a Júpiter)

 

Caro avô, como estás?

 

JÚPITER

 

Voltas arrependido?

 

CUPIDO

 

Não; venho despedir-me. Adeus.

 

MARTE

 

Vai-te, insolente.

 

CUPIDO

 

Meu pai!...  

 

MARTE

 

Cala-te!

 

CUPIDO

 

Ah! não! Um conselho prudente:

Deixai a divindade e fazei como eu fiz.

Sois deuses? Muito bem. Mas, que vale isso? Eu quis

Dar-vos este conselho; é de amigo. 

 

MARTE

 

É de ingrato.

Do mundo fascinou-te o rumor, o aparato.

Vai, espírito vão! — Antes deus na humildade,

Do que homem na opulência.

 

CUPIDO

 

É fresca a divindade!

 

JÚPITER

 

Custa-nos caro, é certo: a dor, a mágoa, a afronta,

O desespero e o dó.

 

CUPIDO

 

A minha é mais em conta.

 

VULCANO

 

Onde a compras agora?

 

CUPIDO

 

Em casa do alfaiate;

Sou divino conforme a moda.

 

VULCANO

 

 

E o disparate.

 

CUPIDO

 

Venero o teu despeito, ó Vulcano!

 

MARTE

 

Venera

O nosso ódio supremo e divino...

 

CUPIDO

 

Quimera!

 

MARTE

 

... Da nossa divindade o nome e as tradições,

A lembrança do Olimpo e a vitória...

 

CUPIDO

 

Ilusões!

 

MARTE

 

Ilusões!

 

CUPIDO

 

Terra-a-terra ando agora. Homem sou;

Da minha divindade o tempo já findou.

Mas, que compensações achei no novo estado!

Sou, onde quer que vá pedido e requestado.

Vêm quebrar-se a meus pés os olhares das damas;

Cada gesto que faço ateia imensas chamas.

Sou o encanto da rua e a vida dos salões,

Alfenim procurado, o ímã dos balões,

O perfume melhor da toilette, o elixir

Dos amores que vão, dos amores por vir;

Procuram agradar-me a feia, como a bela;

Sou o sonho querido e doce da donzela,

O encanto da casada, a ilusão da viúva.

A chibata, a luneta, a bota, a capa e a luva

Não são enfeites vãos: suprem o arco e a seta.

Seta e arco são hoje imagens de poeta.

Isto sou. Vede lá se este esbelto rapaz

Não é mais que o menino armado de carcaz.

 

MARTE

 

Covarde!

 

JÚPITER

 

Deixa, ó filho, este ingrato!

 

CUPIDO

 

Adeus.

 

JÚPITER

 

Parte.

Adeus!

 

CUPIDO

 

Adeus, Vulcano; adeus, Jove; adeus, Marte!

 

 

 

Cena V

 

VULCANO, JUPITER, MARTE

 

MARTE

 

Perdeu-se este rapaz... 

 

VULCANO

 

Decerto, está perdido!  

 

MARTE

(a Júpiter)

 

Júpiter, quem dissera! O doce e fiel Cupido

Veio a tornar-se enfim um homem tolo e vão!

 

VULCANO

(irônico)

 

E contudo é teu filho...

 

MARTE

(com desânimo)

 

É meu filho, ó Plutão!

 

JÚPITER

(a Vulcano)

 

Alguém chega. Vai ver.

 

VULCANO

 

É Apolo e Proteu

 

 

 

Cena VI

 

OS MESMOS, APOLO, PROTEU

 

APOLO

 

Bom dia!  

 

MARTE  

 

Onde deixaste o Pégaso?

 

APOLO

 

Quem? eu?

Não sabeis? Ora, ouvi a história do animal.

Do que acontece é o mais fenomenal.

Aí vai o caso...  

 

VULCANO

 

Aposto um raio contra um verso

Que o Pégaso fugiu.

 

APOLO

 

Não, senhor; foi diverso

O caso. Ontem à tarde andava eu cavalgando;

Pégaso como sempre, ia caracolando,

E sacudindo a cauda, e levantando as crinas,

Como se recebesse inspirações divinas.

Quase ao cabo da rua um tumulto se dava;

Uma chusma de gente andava e desandava.

O que era não sei. Parei. O imenso povo,

Como se o assombrasse um caso estranho e novo,

Recuava. Quis fugir, não pude. O meu cavalo

Sente naquele instante um horrível abalo;

E para repelir a turba que o molesta,

Levanta o largo pé, fere a um homem na testa.

Da ferida saiu muito sangue e um soneto.

Muita gente acudiu. Mas, conhecido o objeto

Da nova confusão, deu-se nova assuada.

Rodeava-me então uma rapaziada,

Que ao Pégaso beijando os pés, a cauda e as crinas,

Pedia-lhe cantando inspirações divinas.

E cantava, e dizia (erma já de miolo):

"Achamos, aqui está! é este o nosso Apolo!"

Compelido a deixar o Pégaso, desci;

E por não disputar, lá os deixei — fugi.

Mas, já hoje encontrei, em letras garrafais,

Muita ode, e soneto, e oitava nos jornais!

 

JÚPITER

 

Mais um!

 

APOLO

 

A história é esta.

 

MARTE

 

Embora! — Outra desgraça.

 

Era de lamentar. Esta não.

 

APOLO

 

Que chalaça!

Não passa de um corcel...  

 

PROTEU

 

E já um tanto velho.

 

APOLO

 

É verdade.

 

JÚPITER

 

Está bem!  

 

PROTEU

(a Júpiter)

 

A que horas o conselho?

 

JÚPITER

 

É à hora em que a lua apontar no horizonte,

E o leão de Neméia, erguendo a larga fronte,

Resplandecer no azul.  

 

PROTEU

 

A senha é a mesma?

 

JÚPITER

 

Não:

 

"Harpócrates, Minerva — o silêncio, a razão".

 

APOLO

 

Muito bem.  

 

JÚPITER

 

Mas Proteu de senha não carece;

De aspecto e de feições muda, se lhe parece.

Basta vir...

 

PROTEU

 

Como um corvo.  

 

MARTE

 

Um corvo. 

 

PROTEU 

 

Há quatro dias,

Graças ao meu talento e às minhas tropelias,

Iludi meio mundo. Em corvo transformado,

Deixei um grupo imenso absorto, embasbacado.

Vasto queijo pendia ao meu bico sinistro.

Dizem que eu era então a imagem de um ministro.

Seria por ser corvo, ou por trazer um queijo?

Foi uma e outra coisa, ouvi dizer.  

 

JÚPITER

 

O ensejo

Não é de narrações, e de obras. Vou sair.

Sabem a senha e a hora. Adeus.

 

(sai)

 

VULCANO

 

Vou concluir

Um negócio.

 

MARTE

 

Um negócio?  

 

VULCANO

 

É verdade.

 

MARTE

 

Mas qual?

 

VULCANO

 

Um projeto de ataque.  

 

MARTE

 

Eu vou contigo.  

 

VULCANO

 

É igual

O meu projeto ao teu, mas é completo.

 

MARTE

 

Bem.

 

VULCANO 

 

Adeus, adeus.

 

PROTEU

 

Eu vou contigo.

 

(Saem Vulcano e Proteu.)

 

 

 

Cena VII

 

MARTE, APOLO

 

APOLO

 

O caso tem

Suas complicações, ó Marte! Não me esfria

A força que me dava o néctar e a ambrosia.

No cimo da fortuna ou no chão da desgraça,

Um deus é sempre um deus. Mas, na hora que passa,

Sinto que o nosso esforço é baldado, e imagino

Que ainda não bateu a hora do destino.

Que dizes? 

 

MARTE

 

Tenho ainda a maior esperança.

Confio em mim, em ti, em vós todos. Alcança

Quem tem força, e vontade, e ânimo robusto.

Espera. Dentro em pouco o templo grande e augusto

Se abrirá para nós.

 

APOLO

 

Enfim...  

 

MARTE

 

A divindade

 

A poucos caberá, e aquela infinidade

De numes desleais há de fundir-se em nós. 

 

APOLO

 

Oh! que o destino te ouça a animadora voz!

Quanto a mim...  

 

MARTE

 

Quanto a ti?

 

APOLO

 

Vejo ir-se dispersado

Dos poetas o rebanho, o meu rebanho amado!

Já poetas não são, são homens: carne e osso.

Tomaram neste tempo um ar burguês e insosso.

Depois, surgiu agora um inimigo sério,

Um déspota, um tirano, um Lopez, um Tibério:

O álbum! Sabes tu o que é o álbum? Ouve,

E dize-me se, como este, um bárbaro já houve.

Traja couro da Rússia, ou sândalo, ou veludo;

Tem um ar de sossego e de inocência; é mudo.

Se o vires, cuidarás ver um cordeiro manso,

À sombra de uma faia, em plácido remanso.

A faia existe e chega a sorrir... Estas faias

São copadas também, não têm folhas, têm saias.

O poeta estremece e sente um calafrio;

Mas o álbum lá está, mudo tranqüilo e frio.

Quer fugir, já não pode: o álbum soberano

Tem sede de poesia, é o minotauro. Insano

Quem buscar combater a triste lei comum!

O álbum há de engolir os poetas um por um.

Ah! meus tempos de Homero!  

 

MARTE

 

A reforma há de vir

Quando o Olimpo outra vez em nossas mãos cair.

Espera!

 

 

 

Cena VIII

 

OS MESMOS, CUPIDO

 

CUPIDO

 

Tio Apolo, é engano de meu pai.

 

APOLO

 

Cupido! 

 

MARTE

Tu aqui, meu velhaco?  

 

CUPIDO

 

Escutai;

Cometeis uma empresa absurda. A humanidade

Já não quer aceitar a vossa divindade.

O bom tempo passou. Tentar vencer hoje, é.

Como agora se diz, remar contra a maré.

Perdeis o tempo.  

 

MARTE

 

Cala a boca!

 

CUPIDO

 

Não! não! não!

 

Estou disposto a enforcar essa última ilusão.

Sabeis que sou o amor...

 

APOLO             

 

Foste.

 

MARTE

 

És o amor perdido.

 

CUPIDO

 

Não, sou ainda o amor, o irmão de Eros, Cupido.

Em vez de conservar domínios ideais,

Soube descer um dia à esfera dos mortais;

Mas o mesmo ainda sou.  

 

MARTE

 

E depois?

 

CUPIDO

 

Ah! não fales,

Ó meu pai! Posso ainda evocar tantos males,

Encher-te o coração de tanto amor ardente,

Que, sem nada mais ver, irás incontinenti,

Pedir dispensa a Jove, e fazer-te homem.

 

MARTE

 

Não!

 

CUPIDO

(indo ao fundo)

 

Vês ali? é um carro. E no carro? Um balão.

E dentro do balão? uma mulher.  

 

MARTE

 

Quem é?

 

CUPIDO

(voltando)

 

Vênus!  

 

APOLO

 

Vênus!

 

MARTE

 

Embora! É grande a minha fé.

Sou um deus vingador, não sou um deus amante.

É inútil.

 

APOLO

(batendo no ombro de Cupido)

 

Meu caro, é inútil.

 

MARTE

 

O farfante

Cuida que ainda é o mesmo.

 

CUPIDO

 

Está bem.

 

APOLO

 

Vai-te embora.

 É conselho de amigo.  

 

CUPIDO

(senta-se)

 

Ah! eu fico!  

 

APOLO

 

Esta agora!

Que pretendes fazer?  

 

CUPIDO

 

Ensinar-vos, meu tio.

 

APOLO

 

Ensinar-nos a nós? Por Júpiter, eu rio!  

 

CUPIDO

 

Ouves meu tio, um som, um farfalhar de seda? Vai ver.

 

APOLO 

(indo ver)

 

É uma mulher. Lá vai pela alameda.

Quem é?   

 

CUPIDO

 

Juno, a mulher de Júpiter, teu pai.

 

APOLO

 

Deveras? É verdade! olha Marte, lá vai.

Não conheci.  

 

CUPIDO

 

É bela ainda, como outrora,

Bela, e altiva, e grave, e augusta, e senhora.

 

APOLO

(voltando a si)

 

Ah! mas eu não arrisco minha divindade...

 

(a Marte)

 

Olha o espertalhão!... Que tens?

 

MARTE

(absorto)

 

Nada. 

 

CUPIDO

 

Ó vaidade!

Humana embora, Juno é ainda divina.

 

APOLO

 

Que nome usa ela agora?  

 

CUPIDO

 

Um mais belo: Corina!

 

APOLO

 

Marte, sinto... não sei...  

 

MARTE

 

Eu também.

 

APOLO

 

Vou sair.

 

MARTE

 

Também eu.

 

CUPIDO

 

Também tu?

 

MARTE

 

Sim; quero ver... quero ir

Tomar um pouco de ar...  

 

APOLO

 

Vamos dar um passeio.

 

MARTE

 

Ficas? 

 

CUPIDO

 

Quero ficar, porém, não sei... receio...  

 

MARTE

 

Fica, já foste um deus, nunca és importuno.

 

CUPIDO

 

É deveras assim? Mas...  

 

MARTE

 

Ah! Vênus!

 

APOLO  

 

Ah! Juno!

 

 

 

Cena IX 

 

CUPIDO, MERCÚRIO

 

CUPIDO 

(só)

 

Baleados! Agora os outros. É preciso,

Graças à voz do amor, dar-lhes algum juízo.

Singular exceção! Muitas vezes o amor

Tira o juízo que há... Quem é? Sinto rumor...

Ah! Mercúrio!  

 

MERCÚRIO

 

Sou eu! E tu? É certo acaso

Que tenhas cometido o mais triste desazo?

Ouvi dizer...  

 

CUPIDO

(em tom lastimoso)

 

É certo.  

 

MERCÚRIO

 

Ah! covarde!

CUPIDO

(o mesmo)

 

Isso! isso!

 

MERCÚRIO

 

És homem?  

 

CUPIDO

 

Sou o amor, sou, e ainda enfeitiço,

Como dantes.

 

MERCÚRIO

 

Não és dos nossos. Vai-te!

 

CUPIDO

 

Não!

Vou fazer-te, meu tio, uma observação.  

 

MERCÚRIO

 

Vejamos.  

 

CUPIDO

 

Quando o Olimpo era nosso...

 

MERCÚRIO

 

Ah!

 

CUPIDO

 

Havia

Hebe, que nos matava, e a Júpiter servia.

Poucas vezes a viste. As funções de correio

Demoravam-te fora. Ah que olhos! ah que seio!

Ah que fronte! ah...  

 

MERCÚRIO

 

Então? 

 

CUPIDO

 

Hebe tornou-se humana.

MERCÚRIO

(com desprezo)

 

Como tu.

 

CUPIDO

 

Ah que, dera! A terra alegre e ufana

Entre as belas mortais deu-lhe um lugar distinto.

 

MERCÚRIO

 

Deveras!

 

CUPIDO

(consigo)

 

Baleado!  

 

MERCÚRIO

(consigo)

 

Ah! não sei... mas que sinto?  

 

CUPIDO

 

Mercúrio, adeus!   

 

MERCÚRIO

 

Vem cá! Hebe onde está?  

 

CUPIDO

 

Não sei.

Adeus. Fujo ao conselho.  

 

MERCÚRIO  

(absorto)

 

Ao conselho?

 

CUPIDO  

 

Farei

Por não atrapalhar as vossas decisões.

Conspirai! Conspirai!

 

MERCÚRIO

 

Não sei... Que pulsações!

Que tremor! que tonteira!  

 

CUPIDO

 

Adeus! Ficas?

 

MERCÚRIO

 

Quem? eu?

Hebe?

 

CUPIDO

(à parte)

 

Falta-me Jove, e Vulcano, e Proteu.

 

 

 

Cena X  

 

MERCÚRIO, DEPOIS MARTE, APOLO

 

MERCÚRIO  

(só)

 

Eu doente? de quê? É singular!  

 

(indo ao vinho)  

 

Um gole!

Não há vinho nenhum que uma dor não console.

 

(bebe silencioso)

 

Hebe tornou-se humana!  

 

MARTE

(a Apolo)

 

É Mercúrio.

 

APOLO  

(a Marte)

 

Medita!

Em que será?   

 

MARTE

 

Não sei.  

 

MERCÚRIO

(sem vê-los)

 

Oh! como me palpita

O coração!  

 

APOLO

(a Mercúrio)

 

Que é isso?   

 

MERCÚRIO  

 

Ah! não sei... divagava...

Como custa a passar o tempo! Eu precisava

De sair e não sei... Jove não voltará?

 

MARTE

 

Por que não? Há de vir.

 

APOLO

(consigo)

 

Que é isso?

 

(silêncio profundo)

 

Estou disposto!

 

MARTE

 

Estou disposto!  

 

MERCÚRIO  

 

Estou disposto!  

 

 

 

Cena XI

 

OS MESMOS, JÚPITER

 

JÚPITER

 

Minha filha, boa nova!

 

(os três voltam a cara)

 

Então? voltais-me o rosto?

 

MERCÚRIO

 

Nós, meu pai?

 

APOLO

 

Eu, meu pai?

 

MARTE

 

Eu não...  

 

JÚPITER

 

Vós todos, sim!

Ah! fraqueais talvez! Um espírito ruim

Penetrou entre nós, e a todos vós tentando

Da vanguarda do céu vos anda separando.

 

MARTE

 

Oh! não, porém...  

 

JÚPITER

 

Porém?  

 

MARTE

 

Eu falarei mais claro

No conselho.

 

JÚPITER  

 

Ah! E tu?

 

APOLO

 

Eu o mesmo declaro.

 

JÚPITER

(a Mercúrio)

 

Tua declaração?

 

MERCÚRIO

 

É do mesmo teor.

 

JÚPITER

 

Ó trezentos de Esparta! Ó tempos de valor!

Eram homens contudo...    

 

APOLO  

 

Isso mesmo: é humano.

Era a força do persa e a força do espartano.

Eram homens de um lado, e homens do outro lado;

A terra sob os pés; o conflito igualado.

Agora o caso é outro. Os deuses demitidos

Buscam reconquistar os domínios perdidos.

Há deuses do outro lado? Há homens. Neste caso

Não teremos a luta em campo aberto e raso.  

 

JÚPITER

 

Assim, pois?   

 

APOLO

 

Assim, pois, já que os homens não podem

Aos deuses elevar-se, os deuses se acomodem.

Sejam homens também.  

 

MARTE

 

Apoiado!

 

MERCÚRIO

 

Apoiado!

 

JÚPITER

 

Durmo ou velo? Que ouvi!   

 

MARTE

 

O caso é desgraçado.

Mas a verdade é esta, esta e não outra.  

 

JÚPITER  

 

Assim

Desmantela-se o Olimpo!

 

MERCÚRIO

 

 

Espírito ruim

Não há, nem há fraqueza, ou triste covardia.

Há desejo real de concluir um dia

Esta luta cruel, estéril, sem proveito.

Deste real desejo, é este, ó pai, o efeito.  

 

JÚPITER

 

Estou perdido!

 

 

 

Cena XII

 

OS MESMOS, VULCANO, PROTEU

 

JÚPITER

 

Ah! vinde, ó Vulcano, ó Proteu!

Estes três já não são nossos.

 

VULCANO

 

Nem eu.

 

PROTEU

 

Nem eu.

 

JÚPITER

 

Também vós?

 

PROTEU

 

Também nós!

 

JÚPITER

 

Recuais?  

 

 

 

VULCANO

 

Recuamos.

Com os homens, enfim, nos reconciliamos.

 

JÚPITER

 

Fico eu só? 

 

MARTE

 

Não, meu pai. Segue o geral exemplo.

É inútil resistir; o velho e antigo templo

Para sempre caiu, não se levanta mais.

Desçamos a tomar lugar entre os mortais.

É nobre: um deus que despe a auréola divina.

homem!  

 

JÚPITER

 

Não! não! não!

 

APOLO

 

O tempo nos ensina

Que devemos ceder.  

 

JÚPITER

 

Pois sim, mas tu, mas vós,

Eu não. Guardarei só um século feroz

A honra da divindade e o nosso lustre antigo,

Embora sem amparo, embora sem abrigo.  

 

(a Apolo,com sarcasmo)

 

Tu, Apolo, vais ser pastor do rei Admeto?

Imolas ao cajado a glória do soneto?

Que honra!  

 

APOLO

 

Não, meu pai, sou o rei da poesia.

Devo ter um lugar no mundo, em harmonia

Com este que ocupei no nosso antigo mundo.

O meu ar sobranceiro, o meu olhar profundo,

A feroz gravidade e a distinção perfeita,

Nada, meu caro pai, ao vulgo se sujeita.

Quero um lugar distinto, alto, acatado e sério.

Co’a pena da verdade e a tinta do critério

Darei as leis do belo e do gosto. Serei

O supremo juiz, o crítico.

 

JÚPITER

 

Não sei

Se lava o novo ofício a vilta de infiel...

 

APOLO

 

Lava.

 

JÚPITER

 

 

E tu, Marte?

 

MARTE

 

Eu cedo à guerra de papel.

Sou o mesmo; somente o meu valor antigo

Mudou de aplicação. Corro ainda ao perigo,

Mas não já com a espada: a pena é minha escolha.

Em vez de usar broquel, vou fundar uma folha.

Dividirei a espada em leves estiletes,

Com eles abrirei campanhas aos gabinetes.

Moral, religião, política, poesia,

De tudo falarei com alma e bizarria.  

Perdoa-me, ó papel, os meus erros de outrora,

Tarde os reconheci, mas abraço-te agora!

Cumpre-me ser, meu pai, de coração fiel,

Cidadão do papel, no tempo do papel.

 

JÚPITER

 

E contudo, inda há pouco, o contrário dizias,

E zombavas então destas papelarias...  

 

MARTE

 

Mudei de opinião...

 

JÚPITER

(a Vulcano)

 

E tu, ó deus das lavas,

Tu, que o raio divino outrora fabricavas.

Que irás tu fabricar? 

 

VULCANO

 

Inda há pouco o dizia

Quando Marte do tempo a pintura fazia:

Se o valor deste tempo é de peso ou de almaço,

Mudo de profissão, vou fazer penas de aço.

Hei de servir alguém, aqui ou em qualquer parte,

Ou a ti ou a outro, ou a Jove ou a Marte.

Os raios que eu fazia, em penas transformados,

Como eles hão de ser ferinos e aguçados.

A questão é de forma.

 

MARTE

(a Vulcano)

 

Obrigado.

 

JÚPITER

 

Proteu,

Não te dignas dizer o que farás?   

 

PROTEU

 

Quem? Eu?

Farei o que puder; e creio que me é dado

Fazer muito: o caso é que eu seja utilizado.

O dom de transformar-me, à vontade, a meu gosto

Torna-me neste mundo um singular composto.

Vou ter segura a vida e o futuro. O talento

Está em não mostrar a mesma cara ao vento.

Vermelho de manhã, sou de tarde amarelo;

Se convier, sou bigorna, e se não, sou martelo.

Já se vê, sem mudar de nome. Neste mundo

A forma é essencial, vale de pouco o fundo.

Vai o tempo chuvoso? Envergo um casacão.

Volta o sol? Tomo logo a roupa de verão.

Quem subiu? Pedro e Paulo. Ah! que grandes talentos!

Que glórias nacionais! que famosos portentos!

O país ia à garra e por triste caminho,

Se inda fosse o poder de Sancho ou de Martinho.

Mas se a cena mudar, tão contente e tão ancho,

Dou vivas a Martinho, e dou vivas a Sancho!

Aprendi ó meu pai, estas coisas, e juro

Que vou ter grande e belo um nome no futuro.

Não há revoluções, não há poder humano

Que me façam cair...

 

(com ênfase)

 

O povo é soberano.

A pátria tem direito ao nosso sacrifício.

Vê-la sem este jus... mil vezes o suplício!

 

(voltando ao natural)

 

Deste modo, meu pai, mudando a fala e a cara,

Sou na essência Proteu, na forma Dulcamara...

De tão bom proceder tenho as lições diurnas.

Boa tarde!

 

JÚPITER

 

Onde vais?  

 

PROTEU

 

Levar meu nome às urnas!

 

JÚPITER

(reparando, a todos)

 

Vêm cá. Ouvi agora... Ah! Mercúrio...

 

MERCÚRIO

 

Eu receio

Perder estas funções que exerço de correio...

Mas...

 

 

 

Cena XIII

 

OS MESMOS, CUPIDO 

 

CUPIDO

 

Cupido aparece e resolve a questão.

Ficas ao meu serviço.  

 

JÚPITER

 

Ah!

 

MERCÚRIO

 

Em que condição?

 

CUPIDO

 

Eu sou o amor, tu és correio.

 

MERCÚRIO

 

Não, senhor.

Sabes o que é andar ao serviço de amor,

Sentir junto à beleza a paixão da beleza,

O peito sufocado, a fantasia acesa,

E as vozes transmitir do amante à sua amada,

Como um correio, um eco, um sobrescrito, um nada?

Foste um deus como eu fui, como eu, nem mais nem menos.

Homens, somos iguais. Um dia, Marte e Vênus,

A quem Vulcano armara urna rede, apanhados

Nos desmaios do amor, se foram libertados,

Se puderam fugir às garras do marido,

Foi graças à destreza, ao tino conhecido,

Do ligeiro Mercúrio. Ah que serviço aquele!

Sem mim quem te quisera, ó Marte, estar na pele!

Chega a hora; venceu-se a letra. És meu amigo.

Salva-me agora tu, e leva-me contigo.

 

MARTE

 

Vem comigo; entrarás na política escura.

Proteu há de arranjar-te uma candidatura.

Falarei na gazeta aos graves eleitores,

E direi quem tu és quem foram teus maiores.

Confia e vencerás. Que vitória e que festa!

Da tua vida nova a política... é esta:

Da rua ao gabinete, e do paco ao tugtirio,

Farás o teu papel, o papel de Mercúrio;

O segredo ouvirás sem guardar o segredo.

A escola mais rendosa é a escola do enredo.

 

MERCÚRIO

 

Sou o deus da eloqüência: o emprego é adequado.

Verás como hei de ser na intriga e no recado.

Aceito a posição e as promessas...  

 

CUPIDO

 

Agora,

Que a tua grande estrela, erma no céu, descora,

Que pretendes fazer, ó Júpiter divino?

 

JÚPITER

 

Tiro desta derrota o necessário ensino.

Fico só, lutarei sozinho e eternamente.   

 

CUPIDO

 

Contra os tempos, e só, lutas inutilmente.

Melhor fora ceder e acompanhar os mais,

Ocupando um lugar na linha dos mortais.

 

JÚPITER

 

Ah! se um dia vencer, contra todos e tudo,

Hei de ser lá no Olimpo um Júpiter sanhudo!

 

CUPIDO

 

Contra a suprema raiva e a cólera maior

Põe água na fervura uma dose de amor.

Não te lembras? Outrora, em touro transformado,

Não fizeste de Europa o rapto celebrado?

Em te dando a veneta, em cisne te fazia.

Tinhas um novo amor? Chuva de ouro caías...  

 

JÚPITER

(mais terno)

 

Ah! bom tempo!

 

CUPIDO

 

E contudo à flama soberana

Uma deusa escapou, entre outras — foi Diana.

 

JÚPITER

 

Diana!  

 

CUPIDO

 

Sim, Diana, a esbelta caçadora;

Uma só vez deixou que a flama assoladora

O peito lhe queimasse — e foi Endimião

Que o segredo lhe achou do feroz coração.

 

JÚPITER

 

Ainda caça, talvez? 

 

CUPIDO

 

Caça, mas não veados:

Os novos animais chamam-se namorados.  

 

JÚPITER

 

É formosa? É ligeira?

 

CUPIDO

 

É ligeira, é formosa!

É a beleza em flor, doce e misteriosa;

Deusa, sendo mortal, divina sendo humana.

Melhor que ela só Juno.

 

APOLO

 

Hein?... Ah! Juno!

 

JÚPITER

(cismando)  

 

Ah! Diana!

 

MERCÚRIO

 

Cede, ó Jove. Não vês que te pedimos todos?

Neste mundo acharás por diferentes modos,

Belezas a vencer, vontades a quebrar,

—Toda a conjugação do grande verbo amar.

Sim, o mundo caminha, o mundo é progressista:

Mas não muda uma coisa: é sempre sensualista.

Não serás, por formar teu nobre senhorio,

Nem cisne ou chuva de ouro, e nem touro bravio.

Uma te encanta, e logo a tua voz divina

Sem mudar de feições, podes ser... crinolina.

De outra soube-te encher o namorado olhar:

Usa do teu poder, e manda-lhe um colar.

A Costança uma luva, Ermelinda um colete,

Adelaide um chapéu, Luísa um bracelete.

E assim, sempre curvado à influência do amor,

Como outrora, serás Jove namorador!

 

CUPIDO

(batendo-lhe no ombro)

 

Que pensas, meu avô?   

 

JÚPITER

 

Escuta-me, Cupido.

Este mundo não é tão mau, nem tão perdido,

Como dizem alguns. Cuidas que a divindade

Não se desonrará passando à humanidade?

 

CUPIDO

 

Não me vês?   

 

JÚPITER  

 

É verdade. E, se todos passaram,

Muita coisa de bom nos homens encontraram.

 

CUPIDO

 

Nos homens, é verdade, e também nas mulheres.

 

JÚPITER

 

Ah! dize-me, inda são a fonte dos prazeres?

 

CUPIDO

 

São.  

 

JÚPITER

(absorto)                                

 

Mulheres! Diana!  

 

MARTE

 

Adeus, meu pai!  

 

OS OUTROS

 

Adeus!  

 

JÚPITER

 

Então já? Que é lá isso? Onde ides, filhos meus?

 

APOLO

 

Somos homens.  

 

JÚPITER

 

Ah! Sim...  

 

CUPIDO

(aos outros)

 

Baleado! 

 

JÚPITER

(com um suspiro)

 

Ide lá!

Adeus. 

 

OS OUTROS

(menos Cupido)

 

Adeus, meu pai.

 

(Silêncio.)

 

JÚPITER

(depois de refletir)

 

Também sou homem.  

 

TODOS

 

Ah!

 

JÚPITER

(decidido)

 

Também sou homem, sou; vou convosco. O costume

 Meio homem já me fez, já me fez meio nume.

Serei homem completo, e fico ao vosso lado

Mostrando sobre a terra o Olimpo humanizado.

 

MERCÚRIO

 

Graças, meu pai!    

 

CUPIDO

 

Venci! 

 

MARTE 

(a Júpiter)

 

A tua profissão?  

 

APOLO

 

Deve ser elevada e nobre, uma função

Própria, digna de ti, como do Olimpo inteiro.

Qual será?

 

JÚPITER

 

Dize lá.

 

CUPIDO

(a Júpiter)

 

Pensa!   

 

JÚPITER

(depois de refletir)

 

Vou ser banqueiro!

 

(Fazem alas. O Epílogo atravessa do fundo e vem ao

proscênio.)  

 

EPÍLOGO

 

Boa noite. Sou eu, o Epílogo. Mudei

O nome. Abri a peça, a peça fecharei.

O autor, arrependido, oculto, envergonhado,

Manda pedir desculpa ao público ilustrado;

E jura, se cair desta vez, nunca mais

Meter-se em lutas vãs de numes e mortais.

Pede ainda o poeta um reparo. O poeta

Não comunga por si na palavra indiscreta

De Marte ou de Proteu, de Apolo ou de Cupido.

Cada qual fala aqui como um deus demitido;

É natural da inveja; e a idéia do autor

Não pode conformar-se a tão fundo rancor.

Sim, não pode; e, contudo, ama aos deuses, adora

Essas lindas ficções do bom tempo de outrora.

Inda os crê presidindo aos mistérios sombrios,

No recesso e no altar dos bosques e dos rios.

Às vezes cuida ver atravessando as salas,

A soberana Juno, a valorosa Palas;

A crença é que o arrasta, a crença é que o ilude

Neste reverdecer da eterna juventude.

Se o tempo sepultou Eros, Minerva, e Marte,

Uma coisa os revive e os santifica: a arte.

Se a história os dispersou, se o Calvário os baniu,

A arte, no mesmo amplexo, a todos reuniu.

De duas tradições a musa fez só uma:

David olhando em face a sibila de Cuma.

Se vos não desagrada o que se disse aqui,

Sexo amável, e tu, sexo forte, aplaudi.  

 

 

 

 

NOTA

 

O antepenúltimo verso que o Epílogo recita:

 

David olhando em face a sibila de Cuma.

 

é tradução de um verso, com que o marquês de Belloy fecha um dos seus belos sonetos:

 

En regard de David la sibylle de Cume,

 

o  qual é paráfrase daquele hino da Igreja:

 

Teste David cum sibylla.

 

 

 

FIM